Se fosse qualquer outro filme, não
haveria problema nenhum. Eu não gosto de imensos filmes. O que me incomoda é
ver-me a ser obrigada a incluir as palavras “Tarantino” e “desilusão” na mesma
frase. Incomoda-me pela primeira vez não ter tido vontade de me por em pé na
sala de cinema a assobiar e a aplaudir no final do filme. Perturbou-me
encontrar posts entusiastas de amigos meus no Facebook, claramente em êxtase
após ter visto o filme: o mesmo êxtase que eu senti nos dias a seguir a ver reservoir
Dogs, Pulp Fiction, Kill Bill’s, Inglorious Basterds, e até a ver Death Proof,
considerado um filme menor. Eu lembro-me bem da sensação, não acontece muitas
vezes, e eu andava há meses à espera de voltar a sentir o mesmo. Mas saí da
sala de cinema sem vontade de aplaudir nem de ir para o Facebook celebrar a experiência.
Saí desiludida e por isso, saí zangada.
Eu não me incomodo com violência
nem sexo gratuito, se me incomodasse não ia ver filmes do Tarantino. Eu não me
incomodo com palavras e com racismo. Isso são recalcamentos americanos e que a
nós não fazem comichão. Eu incomodo-me com historias mal contadas, e é esse o
problema que tenho com o Django.
Tarantino é tem sido sempre
considerado um realizador arrojado, polémico e rebelde. Só que não é: é um
contador de histórias na tradição narrativa mais clássica possível. Mesmo que
as suas historias estejam encharcadas em sangue, maminhas e palavrões, por
baixo encontramos sempre a história, limpinha e impecável, tudo no sitio certo,
progressão de personagem impecável, clareza absoluta de intenções, ritmo
irrepreensível. Não vale sequer a pena mencionar pela milésima vez a obsessão
de Tarantino pela história do Cinema e os seus mestres. É um tipo que percebe
do assunto, isso é ponto assente.
Então alguém me explique de onde
saiu este trapo de historia mal enjorcada? Porque se um filme trapalhão como
este poderia ser perdoável na mão de qualquer outro realizador, vindo de Tarantino,
é atroz.
Problema 1# - Personagem principal?
Django Unchained foi nos vendido
com a seguinte premissa: um escravo negro liberta-se e desata a matar tudo o
que se mete à frente dele para salvar a sua mulher e vingar-se do diabo branco
que o oprimiu. Esta premissa é coerente com Tarantino. Em Death Proof vemos um
grupo de mulheres a vingarem o seu sexo e a recusar o papel de vitima da mulher
na história do Cinema. Em Kill Bill, a noiva parte pelo mundo com uma lista de
nomes e sede de justiça. Em Inglorious basterds, os Judeus viram o bico ao
prego e mudam o curso história. Those were great movies...
Era isso que se esperava de Django:
um escravo faminto de vingança, uma força da natureza que não se conforma com a
ordem social que o coloca no fundo da cadeia alimentar. Mas Django não é nada
disso: é um escravo, como outro qualquer, um negro que se habituou a pôr-se no
seu lugar e piar fininho quando o tentam expulsar de um bar. É fácil ser um
herói quando há alguém a estrategar por nós, a lutar as batalhas por nós, a
bater o pé por nós. O herói desta história é o Dr. Shultz. O europeu que vem
salvar o dia, que liberta o escravo, que pensa por ele, que o veste e que lhe
dá um cavalo, que faz da sua missão ajudá-lo a sobreviver, e que se sacrifica
finalmente pela liberdade de outrem. É por Shultz que torcemos, é o seu charme,
carisma e perspicácia (qualidades que acompanham Christopher Waltz por onde
quer que ele vá) que marcam o filme. O que nos conduz ao:
Problema 2# - 3º Acto para quê?
No final do 2º acto assistimos à
grande cena climática do filme. O que é um erro crasso, porque nisto dos filmes
e das histórias, é geralmente considerada boa ideia deixar a cena mais entusiasmante
para meados do 3º acto. Mas não. Ainda com meia hora de filme pela frente temos
uma cena de tiroteio épica e encharcada de sangue em que morre o vilão (o
Monsieur Candie do sempre hestriónico mas eficaz DiCaprio) e morre o herói (já
tivemos esta conversa, Shultz e não Django).
A partir daqui, eu estava pronta
para sair da sala. Podia ter ficado assim e não estava mal de todo. Mas não!
Não só o filme continua como ainda temos de levar com uma long shot do escroto
do Jamie Foxx logo de seguida. Eu gostava muito de ter vivido a minha vida sem
essa imagem.
A grande cena climática do filme
acabou por ser um Django a libertar-se usando o tipo de manha que aprendeu com
o Shultz (e que funciona com australianos, cuidado, porque um americano nunca
cairia numa esparrela daquelas) e a voltar à mansão, onde assassina 4 ou cinco
pessoas desarmadas. Quite a hero...
Problema 3# - O escravo-sócio
No meio desta história toda houve
uma personagem que era verdadeiramente interessante e relevante se o objetivo fosse
discutir a escravatura a fundo: a figura do escravo fiel a seu dono, que
concorda com a inferioridade da raça negra, que compactua com tudo aquilo, que
se escandaliza com o negro que se atreve a montar um cavalo, e que trai os da
sua cor à primeira hipótese. Quão interessante seria refletir acerca disto:
como o poder pequenino de ser o chefe dos escravos é suficiente para corromper
o coração de um homem, como as causas são muitas vezes sabotadas por quem está
dentro delas por este ou aquele interesse. Até podia revelar mais sobre o
Monsieur Candy, aparentemente um monstro racista, mas que têm num negro o seu
melhor amigo, a sua mão direita.
Mas a oportunidade foi perdida, e a
personagem de Samuel Jackson acaba por ser pouco mais do que uma caricatura,
mais cómico do que revoltante, e com um final inglório: um velhinho desarmado,
assassinado por um igual, sem ter tudo sequer a hipótese de contar a sua
historia. Django, Django, mas que herói...
Problema 4# - Hip hop? What the Cluster-fuck?
Não tem desculpa possível.
Desculpem, nem consigo pensar nisso sem começar a sentir uma hemorragiazinha
cerebral... Tarantino, o homem das bandas sonoras, o tipo que sabia exatamente
que musicas ir buscar ao baú, o homem que nos permitiu descobrir pérolas como “Down
in Mexico”, “Woo, woo”, “Girl, you’ll be a woman soon”, “Bang Bang”, e são as
primeiras que me vêm à cabeça... como é que isto aconteceu? Django, o escravo-gangster?
Eu já não estava a gostar da personagem,
eu já não gostava do Jamie Foxx, com Tupac a tocar de fundo, esquece. Ah, o que
me leva ao ultimo problema:
Problema 5# - Jamie Foxx Suxx
Isto talvez seja só de mim - mas
não acho que seja. O Jamie Foxx é daqueles atores que não me suscitam a mais
pequena empatia. Não me lembro de onde li isto, mas recordo-me de algures,
alguém ter dito que o Jamie Foxx é tão unlikable que quando ele fez de Ray
Charles, o espetador começa a torcer pela cegueira. Eu assino por baixo. Li
também que originalmente o Tarantino tinha considerado o Will Smith para fazer
de Django. Não sei se o Prince of Bel Air seria a melhor opção, mas pior do que
o Jamie Foxx não podia ser.
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