"When critics disagree, the artist is in accord with himself"

Oscar Wilde

15.3.11

Biutiful (or como fui mais uma vez enganada a ver um filme do Iñarritu)

Existem dois tipos de espectadores: os que adoram Iñarritu e os que desprezam do fundo do coração. Eu pertenço ao segundo grupo e, como tal, até assumo que não sou a critica mais imparcial deste filme. Se fazem parte do primeiro grupo de espectadores, aviso já, vão ficar muito chateados com o que eu vou dizer. Prossigam a leitura por vossa conta e risco.

Em Iñarritu não vejo mais do que um abuso desavergonhado de truques narrativos e cinematográficos que levam o espectador mais incauto a sentir-se comovido e afectado por algo real e na verdade não foi mais do que manipulado. Acontecia em Babel, acontece em Biutiful: um bombardeamento de angústias, desesperos e injustiças sociais esfregadas na cara do espectador da forma mais gráfica e escatológica possível. Quer fazer-nos sentir alguma coisa, qualquer coisa, reagir. Há formas de fazê-lo sem causar náusea, mas talvez esta seja a forma mais fácil. É este o truque de realizador de Iñarritu: o nojo.

Nos primeiros 10 minutos de filme somos sujeitos às seguintes torturas: uma coruja morta, um funeral de três criancinhas; o fantasma de uma criancinha, auto extracção de sangue, urina ensaguentada e a sugestão desse bicho papão da vida moderna: cancro. Ainda o filme não bem começou e já causou no espectador um tal mal-estar e angústia que este fica condicionado na sua perspectiva dos acontecimentos que se desenrolam (dolorosamente) ao longo do restante do filme.

Mas, independentemente do nojo ou deslumbramento que esta estética possa causar no espectador, esse não é sequer o principal problema de Biutiful. A preocupação de um filmmaker deve ser, antes de tudo o resto, saber: "O que é que eu quero contar?". Mas Iñarritu parece sofrer de um short attention span ou de um caso terminal de ADHD que torna os seus filmes desconcentrados e redundantes. Ainda disfarçava enquanto trabalhava com Guillermo Arriaga e dividia as milhentas historias que queria contar por narrativas em mosaico, mas em Biutiful (supostamente, uma narrativa linear) vê-se incapaz de se focar numa personagem, problema ou história.

Na verdade há tanta tralha enfiada à força num só filme que facilmente se conseguem distinguir os vários filmes que podiam ter saído daqui se o homem se conseguisse concentrar durante 5 minutos:
  • Um médium ajuda lutuosos a lidar com a perda de entes queridos mas vê-se incapaz de lidar com a sua morte eminente.
  • Uma família é desfeita pela doença bipolar da mãe que negligencia e agride filhos e trai o marido com o seu irmão.
  • Um casal de Senegaleses ilegais em Barcelona que são separados pela extradição do marido que, explorado pelo sistema, se viu envolvido num negócio de tráfico de droga e de artigos contrafeitos.
  • Um casal de homossexuais chineses gerem juntos uma operação de exploração de trabalhadores seus conterrâneos, e que culmina com um assassinato à la Castro/Seabra e um quilo de chineses gaseados numa cave. 
  • Dois irmãos têm de levantar as ossadas do pai que nunca conheceram e embarcam numa jornada de auto conhecimento e descoberta do seu passado.
  • Um pai solteiro de duas crianças descobre que tem cancro e envolve-se numa série de negócios ilegais para ganhar dinheiro para que os seus filhos não fiquem sem nada após a sua morte.
Sem falar ainda nas cenas absolutamente dispensáveis que, inacreditavelmente, sobreviveram à sala de montagem, nomeadamente a cena de discoteca (fundamentalmente um remake da cena da discoteca de Babel) e a repetição de tudo o que vimos no início do filme quando o filme acaba. Parece que experimentaram pôr a mesma cena no fim e no princípio, para ver onde ficava melhor. E acabou por ficar nos dois.
Mais haveria... não vou bater mais no ceguinho.. ou vá, no mexicano. Existe claro alguma coerência no que diz respeito às preocupações de Iñarritu: injustiças sociais, exploração, globalização, etc. São preocupações perfeitamente legitimas, mas realmente lamentável é a forma grotesca e moralizante como as aborda, a leveza com que as abandona por outra coisa qualquer, os jogos de causa-consequência, karma e castigo divino e o asco que envolve tudo isto. No fundo, acho que se pode tirar o realizador do México, mas não se tira o México do realizador.

Dito isto, Javier Bardem podia bem ter recebido aquele Óscar, nem que fosse como compensação pela dor de costas que deve ter sido acartar com este pastel completamente sozinho, com uma dignidade merecedora de aplauso.