Em muito do que tenho lido acerca de Imaginarium Of Doctor Parnassus parece inevitável a referência a Alice no País das Maravilhas, mais precisamente, à versão de Tim Burton. De facto existem semelhanças fundamentais entre os dois filmes mas resultam em duas experiencias cinematograficas extremamente diferentes.
É clara a semelhança dos universos simultaneamente fantásticos e assustadores que existem no fundo da toca do coelho de Alice ou do outro lado do espelho de Parnassus: ambos são formulações do imaginário e do onírico, da magia de deixar a lógica e o sentido de parte e do horror de darmos de caras com os nossos maiores medos. Terry Gilliam e Tim Burton são ambos bem conhecidos por escolherem projectos pelas possibilidades estéticas dos mesmos (um mais para o gótico e o outro mais para o, digamos, barroco) e não tanto pela história, e até aqui, tudo bem.As semelhanças, penso eu, ficam mesmo por aqui.
Ouvi e li em muito lado que se estava mesmo à espera que Tim Burton fizesse a Alice, que era um filme à sua medida e que já se estava mesmo à espera do que ele ia fazer. Pessoalmente, não poderia concordar menos, e a verdade é que o projecto era tão desadequado para Burton que ele teve de mudar a história completamente para fazer com que o filme funcionasse. A Alice de Carrol Lewis é um conto altamente alucinado, desprovido de grande sentido e totalmente episódico e fragmentado. Para um realizador “by the book” como Burton isso seria um inferno narrativo! Como tal, Burton pegou na Alice, pôs-lhe uns aninhos em cima, deu-lhe um contexto, passado, motivação e conflito. Criou uma história com principio, meio, clímax e fim. Inseriu, como quem não quer a coisa, uma insinuação de interesse amoroso. Reinventou personagens e certificou-se que estas evoluiram e aprenderam algo com a experiência. E no final, como é apanágio da Disney (e pensando bem, do próprio Burton) deu-lhe uma moral. Tudo construido de forma impecável, contenção estética e timing perfeito. Não é A Alice, mas, como dizem a dada altura do filme, “it’s almost Alice”.
Já Terry Gilliam fez tão completamente o contrário que quase podia ser de propósito. É verdade que o inicio do filme sugere que vamos a assistir a um conto de contornos tradicionais, pela imagem do livro onde surge, em latim, o subtítulo da historia: O homem que enganou o diabo. Mas ao contrario de Burton, Gilliam não se preocupa em dar todos os nós à historia, em resolver todos os problemas, em construir uma narrativa de acordo com todas as regras aristotélicas do que é “proper storytelling”. Na verdade, existe um certo tom oralidade, de aleatoriedade nos momentos de introduzir este ou aquele elemento sem que o público esteja preparado para tal. São muitas as pontas soltas e o filme sofre consideravelmente com este desequilíbrio da narrativa: as personagens são pouco claras nas suas intenções e o protagonismo é partilhado entre todos sem que seja possivel definir quem é principal e quem é secundário. Tony (Ledger/Depp/Farrel/Law) inspira confiança e empatia e afinal é vilão, Anton é dispensável e irritante e afinal salvou o dia. Os eventos que ocorrem no território imaginário são pouco claros (o que não é certamente despropositado) e certos elementos são absolutamente supérfluos e não acrescentam nada à historia (máfia russa? Porquê?!). Mas como somos avisados no inicio do filme, “Don't worry if it doesn't all make sense”. É dificil dizer quanto do filme é intenção do autor e quanto é resultado dos obstáculos que tiveram de ser ultrapassados para finalizar o filme, como a morte de Heath Ledger e o orçamento limitado de Gilliam.Mas ao olhar para estes filmes interessa reparar na imagem mais do que na palavra, e na minha opinião, essa batalha é vencida por Parnassus. Há quem diga que um bom efeito especial é aquele em que não reparamos e se, à partida, estamos conscientes desses artifícios durante o filme, é um trabalho mal feito. Nesse aspecto, Burton disfarçou as costuras com mestria, criando um universo fantástico mas credível e palpável, com um 3D surpreendemente sóbrio, usado de forma sensata para conferir profundidade à acção, e nada mais. Mas no que diz respeito a efeitos especiais maus, existem dois tipos: os maus por falta de meios (como os infames discos voadores com fios visiveis de Ed Wood) ou maus por se ter tanto dinheiro que se esbanja em efeitos excessivos que saturam o filme, matam a história e cansam o espectador (que é como quem diz, Avatar). Gilliam obviamente não têm os meios, mas parece-me que, e o Terry Gilliam que me perdoe, ele não precisa de orçamentos avatarianos para fazer filmes, e cheguei a desejar que ele tivesse menos dinheiro ainda, para que todo o filme tivesse a magia artesanal que o torna tão envolvente. Da mesma forma que o palco móvel expunha sem pudor os artificios da construção teatral, o filme permite o espectador vislumbrar os truques, limitações e soluções mais ou menos eficazes da cinematografia. Nos momentos em que tentava um maior impacto visual, falhava. É precisamente nos quadros mais toscos e inacabados que Parnassus conquista o espectador (se este se disponibilizar para ser conquistado, isto é). O imaginário de Parnassus é um delicioso teatrinho barroco, uma brincadeira de crianças, um baile de máscaras trôpego e extasiado e uma vaga recordação ressacada da noite anterior. Não sabemos bem o que é que aconteceu, mas foi espectacular!
Confesso que não vi estes filmes com uma postura particularmente imparcial. Gosto muito do Tim Burton, mas houve tanto hype e expectativa à volta de Alice que quando o filme estreou eu já estava farta dele. Por outro lado, gosto muito do Gilliam, gosto muito de contos faustianos e gosto muito do Tom Waits. Quando fui ver o filme já ia preparada para gostar dele, e assim foi. Estou perfeitamente ciente das imperfeições de Parnassus, e sei que não são poucas. Mas eu prefiro imperfeito e emocionante do que perfeito e calculista, anyday!
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